Em jeito de homenagem a Patrícia Rêgo

Em jeito de homenagem a Patrícia Rêgo
Há pessoas que passam pela vida, serenas e discretas, sem que seja devidamente reconhecido o papel importante que tiveram na transformação dos lugares por onde passaram, das instituições onde trabalharam, das pessoas com quem se relacionaram. No que diz respeito à geografia portuguesa, estou convencido que a Patrícia Rego é uma dessas pessoas. Por isso, com este pequeno texto, gostava de, em pinceladas muito largas, ajudar a romper com esta sensação difusa de injustiça que me assola, sem incorrer em derivas panegíricas. Excessivas, pelo menos.
Tendo sido uma das mais brilhantes estudantes da primeira geração de renovadores da Escola de Geografia de Lisboa pós-Orlando Ribeiro, refiro-me a personalidades tão destacadas e influentes como Jorge Gaspar, António de Brum Ferreira e Carlos Alberto Medeiros, entre outros, teve uma vida tão atribulada que o enorme potencial evidenciado acabaria por, apenas parcialmente, se concretizar. A título de exemplo, apenas em 2002, numa fase já madura do seu percurso, concluiu com sucesso o doutoramento. Mas tudo aquilo que fez, fê-lo com enorme sentido de responsabilidade, rigor e competência científicas, integridade e elevação moral. E isso, num tempo de generalizada corrosão do carácter, não é coisa pouca.
Até ao final da sua carreira académica – em novembro de 2024 – foi esta a imagem que retive da Patrícia Rêgo. Uma imagem que começou a ser delineada quando nos conhecemos por intermédio da saudosa Isabel André, geógrafa pioneira nos estudos de género em Portugal, sua confidente e melhor amiga; minha professora, colega e, enfim, também amiga. Não posso deixar de lembrar, comovido, o empenho colocado pela Patrícia quando, juntamente, com alguns outros colegas, nos juntámos para prestar uma derradeira homenagem à Isabel que, entretanto, já não se encontrava entre nós. O modo sentido como narrou o documentário “Isabel Margarida André, uma geógrafa inquieta”, ficará sempre como testemunho de uma enorme amizade e de uma indisfarçável admiração.
Não posso também deixar de assinalar o modo como fui acolhido pela Patrícia na Universidade de Évora desde que, em 2019, nela ingressei como professor auxiliar. Aqui, reforçaram-se os nossos laços de amizade e cresceu a minha admiração por ela. A sua liderança dedicada e serena, o respeito, a atenção e a disponibilidade permanentes para com todos os estudantes, o brio profissional que incutia nas mais pequenas tarefas rotineiras ou burocráticas (e qualquer académico sabe o quão infernais elas se podem tornar), foram aprendizagens decisivas para a minha formação enquanto profissional e ser humano. Saborear os pequenos nadas e não ter dos estudantes a perspectiva fatalista e trágica que, assente em várias camadas de desresponsabilização e ausência de auto-crítica, com demasiada facilidade vemos instalar-se e reproduzir-se.
Recordo ainda o desassombro e a coragem com que liderou o início do processo de reorganização da geografia na Universidade de Évora. Fundadora da licenciatura há duas décadas, nunca deixou de expressar uma sensação de alguma mágoa, pelo facto de reiteradamente os interesses da geografia e as perspectivas dos geógrafos, divididos em dois departamentos diferentes, serem desvalorizados. Na Universidade de Évora, a geografia foi quase sempre vista como filha de um Deus menor e, por se tratar de uma pessoa de grande sensibilidade, dificilmente a Patrícia poderia ter permanecido indiferente às suas circunstâncias. A partir de 2020 e até à sua aposentação, encabeçou, com enorme sacrifício pessoal e enfrentando inúmeras provações, um movimento amplo com vista à revalorização, consolidação e projeção da geografia. Levou até ao fim a sua luta e não creio que a relevância desse contributo tenha sido alguma vez publicamente reconhecida. Faço-o agora.
A geografia da Universidade de Évora, e também a geografia portuguesa, deve muito à Patrícia Rêgo e isso não pode deixar de ser sublinhado. Desde 2023, coube aos restantes geógrafos dar continuidade ao seu trabalho, missão que abraçámos com sentido de responsabilidade, espírito voluntarista e plena consciência de que nenhum processo de mudança institucional, sobretudo quando assume contornos de ruptura, se desenrola sem gerar dinâmicas de firme resistência e oposição. Mas sabemos, como sabia a Patrícia, que estamos do lado certo e não podemos deixar de honrar o seu legado de defesa intransigente da geografia e do seu futuro na Universidade de Évora.
Por habitarmos num tempo voraz de enorme sofreguidão performativa e produtivismo académico exacerbado, acabamos por nos esquecer que nenhum de nós se esgota na profissão que exerce e o ser humano multifacetado que somos é aquilo que verdadeiramente nos define. Por isso, quero exaltar os inúmeros méritos da Patrícia Rêgo como professora de mão-cheia, profissional íntegra e dedicada, líder suave, colega generosa e solícita, ser humano digno e decente com quem muito aprendi e a quem muito devo. Saúdo a Associação Portuguesa de Geógrafos pela possibilidade concedida de homenagear a Patrícia Rêgo, de lhe expressar a minha profunda gratidão e amizade.
Obrigado Patrícia!
André Carmo