#42 Luciano Lourenço
Luciano Lourenço | Novembro 2019
Nome: Luciano Fernandes Lourenço
Naturalidade: Goulinho, Aldeia das Dez, Oliveira do Hospital
Idade: 68 anos
Formação académica: Doutorado em Geografia Física
Ocupação Profissional: Professor Catedrático, Universidade de Coimbra
Outros: Presidente da Direção da ENB - Escola Nacional de Bombeiros (Setembro de 1997 a Janeiro de 2002);
Coordenador (Diretor-Geral) da APIF - Agência para a Prevenção de Incêndios Florestais (Agosto de 2004 a Março de 2006).
1 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
O livro que mais me marcou foi, sem qualquer dúvida, o Escutismo para Rapazes (Scouting for Boys), de Baden Powell (BP), tendo-me marcado não só na minha formação enquanto ser humano, mas também terá contribuído para que viesse a ser geógrafo e, porventura, para que me tivesse dedicado ao estudo dos riscos e das suas plenas manifestações, as catástrofes. Com efeito, o livro trata de temas muito caros à geografia, tais como, por exemplo: desenvolver o espírito de observação, viver ao ar livre, história natural, observação de plantas (árvores e folhas) e de animais selvagens, leitura de cartas, orientação, uso da bússola, seguir pistas, … mas também promove princípios e valores, alguns dos quais parecem ter começado a cair em desuso, designadamente cavalheirismo, autodisciplina e civismo, do mesmo modo que estimula o desenvolvimento de hábitos saudáveis e segurança de vidas e, ainda, ajuda na preparação para as catástrofes e o socorro. Trata-se, pois, de um compêndio com normas úteis, tanto para a vida como para a nossa relação com a natureza.
Ainda neste contexto, outro livro que entendo aqui mencionar, por me ter marcado como geógrafo bem como a várias outras gerações de geógrafos e cuja leitura recomendo por ser desconhecido de muitos geógrafos mais jovens, está prestes a completar oitenta anos sobre a data da sua edição (1940). Refiro-me ao “Esforço do homem na bacia do Mondego”, uma edição do autor, o saudoso Professor Doutor Alfredo Fernandes Martins, que permitiu a divulgação da sua tese de licenciatura e que, apesar do tempo decorrido, continua a entusiasmar os leitores, pois permite-lhes perceber melhor algumas das transformações sofridas nesse extenso território e, muito em especial, no do Baixo Mondego.
Ainda que o não tenha referido especificamente, na sua obra já estava plasmado aquilo que, na linguagem de hoje, chamaríamos o estudo do risco de inundação no Baixo Mondego, pelo que, ao tratar esse risco, foi precursor desta temática, apontando um dos caminhos a que a geografia se viria a dedicar e que constituiu um bom exemplo de estudo de caso, pois caraterizou de forma irrepreensível toda a bacia hidrográfica, ressaltando o esforço desenvolvido pelos seres humanos para contrariarem a ação erosiva da natureza, em especial na sequência das queimadas, uma prática com consequências semelhantes às dos incêndios florestais da atualidade.
Em termos comparativos, poderemos ainda refletir sobre a profundidade com que o tema foi tratado nesta dissertação, destinada a obter o grau de licenciado, e a superficialidade com que algumas abordagens mais recentes, para obtenção de graus superiores (mestrado e doutoramento), tratam os respetivos temas, que nem sempre são consentâneas com o esperado aumento de qualidade da investigação científica, à medida que se alcançam graus académicos mais elevados. Ainda que não seja fácil encontrar exemplares desta obra para compra, se bem que, por vezes, vá aparecendo um ou outro na internet, aproveitamos para sugerir a sua leitura através dos exemplares disponíveis nas bibliotecas e, para obviar a esta dificuldade, que o Departamento de Geografia e Turismo da Universidade de Coimbra, a propósito dos 80 anos de edição, proceda à sua reedição e a disponibilize também em formato digital.
2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
Ser geógrafo significa ou, melhor, deverá significar um profundo conhecimento e, simultaneamente, um grande respeito pelos territórios, físico e geohumano, bem como pelos patrimónios (natural, edificado, cultural,…) neles existentes, sem os quais tudo aquilo que possamos fazer não terá grande relevância. Com efeito, esse conhecimento foi-me particularmente útil nas funções de gestão que desempenhei, quer na Direção da Escola Nacional de Bombeiros, quer, depois, na Coordenação da Agência para a Prevenção de Incêndios Florestais. De igual modo, foi fundamental na realização de vários trabalhos de investigação científica e continua a ser muito útil também na dinamização de atividades extra académicas, designadamente na RISCOS - Associação Portuguesa de Riscos, Prevenção e Segurança - a que presido, bem como na colaboração que empresto aos Baldios do distrito de Coimbra, tanto na COBALCO - Associação para a Cooperação dos Baldios do Distrito de Coimbra, como na ASSOAÇOR - Associação dos Baldios da Serra do Açor”.
3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
A formação de geógrafo tem sido sempre reconhecida, sobretudo pela visão holística e, simultaneamente, especializada com que abordamos os problemas que se nos deparam, mas também pelo conhecimento que temos do território onde decorrem e se manifestam esses problemas. Esse reconhecimento tem sido expresso de várias formas, tanto em privado como em público. Neste caso, foi mencionado no decurso da participação em reuniões técnicas e científicas, no desenvolvimento de investigação científica inter e multidisciplinar, na orientação e coorientação de dissertações de mestrado e doutoramento em especialidades não geográficas ou, ainda, na convocação para júris de provas de mestrado, doutoramento e agregação de áreas científicas que não sendo de geografia, reconhecem o saber geográfico como relevante.
4 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
O período correspondente ao da formação académica é, sem dúvida, a melhor fase de que dispomos ao longo da nossa vida, pelo que deve ser plenamente aproveitada. Se o/a estudante for capaz de se organizar, disporá de tempo suficiente para tudo, onde também se inclui algum tempo para o estudo (não concentrado numa ou duas semanas, mas distribuído regularmente ao longo de cada semestre). Por isso, deverá aproveitar esse tempo da melhor forma, para se formar não só enquanto geógrafo mas também e, sobretudo, enquanto ser humano, o que vai muito para além da sua formação científica. Por outro lado, deverá aproveitar esse tempo de formação para realizar uma experiência internacional de aprendizagem no estrangeiro, num outro contexto de academia, cultura e idioma, de que certamente muito beneficiará no futuro.
As perspetivas para os geógrafos na sociedade do futuro não são muito diferentes das que se oferecem a muitas outras profissões. Os conhecimentos da especialidade, adquiridos durante o percurso universitário, são importantes, mas não são suficientes. Cada vez mais o desempenho profissional é feito em equipas, em que a atitude pessoal, a forma de estar e de encarar a vida são aspetos a ter em conta e que vão muito além do saber especializado.
Por isso, os geógrafos que tiverem sólidos conhecimentos científicos, que não devem ser confundidos com a aplicação de determinada(s) técnica(s), e desde que sejam acompanhados de excelentes relações interpessoais, têm sucesso garantido na sociedade do futuro, ainda que, porventura, a desempenhar funções diferentes daquelas que à partida poderiam pensar vir a realizar.
5 - Queríamos pedir-lhe que escolha um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser de âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha, e comente-o, tendo em conta em particular a sua perspectiva e análise como geógrafo.
Para muitos dos leitores seria incompreensível se eu não escolhesse o tema dos incêndios florestais, não só pela sua representatividade em termos nacionais e internacionais, da Rússia à Amazónia e ao Chile, ou do Canadá e Estados Unidos à Austrália, mas também e sobretudo por ter investigado em Portugal vários dos seus aspetos, designadamente: causas e consequências, em particular os seus efeitos erosivos, ou a importância das condições meteorológicas e a sua associação aos índices de risco (estruturais, conjunturais e tendência para o dia seguinte), ou a cartografia dos incêndios e do risco de incêndio, o estudo de casos concretos, para mencionar alguns dos temas por onde decorreu a minha investigação dendrocaustológica.
A análise como geógrafo faz-me pensar que muito do que se diz sobre as suas relações com as “alterações climáticas”, além de estar na moda, não passa de oportunismo daqueles que as utilizam como álibi. Com efeito, mais do que as mudanças climáticas, são condições meteorológicas muito concretas, relacionadas com a variabilidade climática e que merecem ser mais conhecidas, aquelas que facilitam ou dificultam a propagação das frentes de chamas.
Por outro lado, são sobretudo as alterações verificadas na paisagem rural, traduzidas na redução dos campos agrícolas que, por abandono, se foram convertendo em aumento do espaço florestal e, muito em particular, nas alterações que esse espaço, por falta de gestão, veio a sofrer, pois, paulatinamente, viu a floresta autóctone ser substituída pelas maiores manchas contínuas de floresta da Europa, primeiro de pinheiro bravo e, depois, de eucalipto, que passaram a contribuir decisivamente para o desenvolvimento de grandes incêndios florestais.
Existem, ainda e naturalmente outros fatores, igualmente importantes, desde a prevenção à reabilitação/recuperação das áreas queimadas, passando pelas mudanças de estratégia e dos métodos de extinção, ou pelo desinvestimento no espaço com aptidão florestal, que contribuem para a ocorrência de grandes incêndios florestais, pelo que pretender reduzir a sua gravidade a uma mera consequência da variabilidade climática é, simplesmente, ignorância.
6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?
Portugal dispõe de diversas opções para saídas de campo, todas elas com interesse geográfico. Por nela ter trabalhado e por continuar a ser uma área pouco conhecida para muitos geógrafos, recomendo a Cordilheira Central (serras da Lousã, Açor e Estrela), para um percurso de, no mínimo, um fim de semana (dois dias), para ter possibilidade de, em cada um deles, percorrer uma das suas vertentes, respetivamente noroeste e sueste. No caso de apenas dispor de um só um dia, sugiro que penetre no interior da Cordilheira e visite o Fosso do médio Zêzere, como lhe chamou Orlando Ribeiro, mais especificamente o município de Pampilhosa da Serra, por ser uma das regiões interiores do país mais desconhecida, em que as suas magníficas paisagens se revelam um autêntico tratado de geomorfologia e de geoecologia, por possuir uma excelente gastronomia e, sobretudo, pelo afável trato das gentes serranas, sempre dispostas a bem receber os visitantes ou, se preferir, os turistas, como agora sói dizer-se.