#41 Manuel Tão
Manuel Tão | Outubro 2019
Nome: Manuel Margarido Tão
Naturalidade: Lisboa, São Jorge de Arroios
Idade: 54
Formação académica: Licenciatura em Geografia e Planeamento Regional, pela FCSH-UNL
MSc(Eng) in Transport Engineering and Planning pelo ITS-University of Leeds
PhD. in Transport Economics, pelo ITS-University of Leeds
Ocupação Profissional: Investigador Auxiliar, Universidade do Algarve
1 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.
Há muito tempo que não ofereço a mim próprio o inigualável prazer de uma boa leitura. Mas gosto muito da “Viagem do Elefante” do José Saramago. Há diversas formas de apreciar a obra. Mas de tudo o que mais me deleita é a descrição da viagem de Lisboa para Viena, numa era em que não existiam Modos de Transporte mecanizados. Boa parte das paisagens descritas não me são de todo estranhas: consigo na minha afortunada condição de viajante terrestre pela Europa, reconhecer aquilo que o Saramago descreve, salvo, claro está, a deslocação por mar entre a Catalunha e a Itália. De resto, é tudo uma sucessão de paisagens que eu conheço bastante bem: o Vale do Tejo. A Rota da Beira Interior até Castelo Rodrigo, na Comarca de Riba-Côa. A marcha até Salamanca e Valladolid, na Meseta Ibérica. A passagem pelo Vale do Ebro, a caminho da Catalunha. O Vale do Pó, no Norte de Itália. A difícil estrada de Verona para o Tirol do Sul, através da temível passagem montanhosa do Brenner, até Innsbruck. Depois a chegada a Linz e ao Danúbio, na etapa final até à capital dos Habsburg. Eu conheço todas essas rotas e correspondentes paisagens. É extraordinário que passados tantos séculos, elas sejam ainda hoje, grandes corredores de Transporte e estruturadores insubstituíveis dos territórios pelos quais discorrem.
2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
Sem dúvida que a Formação de Geógrafo confere uma vantagem sem par a quem a acumula com a Formação em Transportes, tanto numa perspetiva técnica como económica. Como a Geografia aglutina um conjunto de diversas Disciplinas de carácter científico, isso é extraordinário quando procuramos analisar um problema de Transportes. Os Transportes existem porque a distribuição espacial dos fatores de produção, sejam materiais ou intangíveis (como uma paisagem natural que pretendemos desfrutar em lazer), não é uniforme. É isso que explica a chamada “geração de viagens”, juntamente com a facilidade que existe de, num determinado intervalo de tempo, aceder a esses mesmos recursos. Ao longo da vida, não apenas em Portugal, mas também no Reino Unido, onde completei a minha formação, reparei no facto de pessoas ligadas aos Transportes, todavia desprovidas de Formação em Geografia, abordarem a questão de forma particularmente redutora. Há uma frase que retenho da autoria de um Professor da University of Lancaster, chamado John Whitelegg, na qual ele afirma qualquer coisa como isto: “o Espaço é ganho com a destruição do Tempo”. Enigmática para muitos, ela é evidente para um Geógrafo, e justiça seja feita, um Economista Espacial. Quando em 1804, no País de Gales, Mr.Trevithick decidiu colocar uma máquina a vapor inventada por um Físico chamado James Watt, no cimo de uma vagoneta, de modo a animar os rodados, ele estava a abrir caminho para que a permuta de indivíduos e recursos através do espaço se desenvolvesse e intensificasse em moldes nunca antes vistos: o Tempo foi parcialmente destruído. E de então até hoje, a tendência não mais parou.
3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Em alguns casos, sem dúvida. Por exemplo na Association for European Transport, onde há uma Comunidade de Consultores grande, onde muitos dos seus membros são Geógrafos, ou acumulam Geografia com Economia e Engenharia. Por exemplo, mesmo aqui perto, na Universidade de Castilla-la-Mancha, onde há Enginieros de Caminos, Canales y Puertos, que são simultaneamente Geógrafos, ou trabalham em equipas multidisciplinares, onde a presença de Geógrafos é constante. Em Portugal nem sempre é fácil, particularmente no que aos Transportes diz respeito. Por um lado, a nível dos Agentes de Planeamento, há algum corporativismo forte que se mantem, com certas formações académicas (não Geógrafos, seguramente!), fazendo por chamar a si um pretenso exclusivismo no tocante à abordagem de determinado tipo de assuntos. Por vezes, e isso é muito visível no que aos Transportes diz respeito: há quem se afirme menos pelo carácter técnico e/ou científico, mas antes pela maior facilidade que – dir-se-ia – movimentar-se “na esfera do poder”. Penso, todavia, que com o passar dos anos, e a queda das fronteiras, decorrente da integração de Portugal na União Europeia, tenderá a desaparecer.
4 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
A um jovem diria que a sua Formação em Geografia é algo que lhe permitirá uma abordagem diferenciadora, a contra-corrente da forma como se tentam resolver problemas do dia-a-dia. Avancemos um exemplo simples. Ligamos a televisão e calha-nos no “zapping” um qualquer debate sobre Economia. Mantemos a nossa atenção no canal, e ouvimos sempre a mesma coisa: “não somos um território competitivo, no Espaço geoeconómico da União Europeia”; ou “já fomos ultrapassados por países da Europa Central, que se juntaram ao “Clube Europeu” muito mais tardiamente do que nós”. Esses “comentadores de serviço”, e “doutos especialistas” são ignorantes em Geografia e portanto, na sua visão distorcida da realidade, o espaço, para além de se limitar ao suporte físico de atividades, é uma mera abstração. Desconhecendo por completo a Europa, equiparam a situação de uma empresa exportadora localizada em Praga, que está a 600 Km de Berlim, com outra em Braga, que se encontra a 3000 Km da Europa Central. É-lhes indiferente que a pera-rocha do Oeste exportada para o Brasil chegue ao Porto de Sines de camião ou de comboio, apesar do transporte do contentor refrigerado custar ao exportador 500€, no primeiro caso, e 250€ no segundo.
A um colega diria que num mundo em que somos dominados por uma corrente segundo a qual há uma elasticidade infinita de recursos, o Geógrafo com a sua abordagem eminentemente espacial, demonstra a sua falência e aponta novos caminhos. Há uma responsabilidade nova, fundamentada empírica e cientificamente, da qual o Geógrafo é protagonista. Dos problemas que afligem o mundo, é lugar comum falar-se na “fome” e na “miséria”. E também os conflitos. Eu (talvez desejando ser “incorreto”) não os identifico como primários, mas antes consequências de outros. Designadamente quatro: i) O Problema da Energia, e deficiente emprego; ii) O Problema da Água e sua escassez; iii) O Problema dos Solos e sua destruição; iv) O Problema da Mobilidade e Acessibilidade, com todas as Externalidades Associadas a um modelo falido, assente no consumo de combustíveis fósseis e congestionamento. O que temos aqui? Fatores de Produção finitos (as tais matérias “ubíquas” a que fazia alusão o velhinho “Modelo de Weber”) e uma deficiente forma de permuta e distribuição dos mesmos. A Nova Globalização que pode e deve substituir a atual vai ter seguramente o contributo dos Geógrafos.
5 - Queríamos pedir-lhe que escolha um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser de âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha, e comente-o, tendo em conta em particular a sua perspectiva e análise como geógrafo.
Um tema atual é para mim a questão da possível “conversão” de uma antiga Base Aérea no Montijo em Aeroporto Civil. Todo o processo está ferido de uma completa opacidade, afigurando-se um paradigma da negação do Planeamento, uma prática recorrente e perversa que nos afasta da Europa, remetendo-nos para a companhia de Estados noutros continentes, ditos “em vias de desenvolvimento”. Há aqui um processo resultante de uma promiscuidade entre política e finança, para a qual “planeamento” é um empecilho. Tenho esperança que as instâncias Europeias coloquem um travão, não apenas a uma desconformidade grosseira do processo, ao afastar-se a realização de um Estudo de Avaliação de Impacto Estratégico, em linha com as Directivas Comunitárias, mas também a um atentado ambiental que afeta outros Estados-Membros, designadamente no que ao fluxo de aves diz respeito. Há também aqui um martelar constante numa insistência aberrante de promover um somatório de porções de território sem nexo e desarticulados entre si, enfim, coisas que já vêm do tempo da construção da Ponte Vasco da Gama, quando um Ministro das Obras Públicas da época respondeu a um jornalista o porquê da travessia ser exclusivamente rodoviária e “nem sequer ter sido preparada para acomodar o comboio mais tarde”: “Já não se fazem pontes mistas em parte nenhuma do mundo”. Estávamos em 1998, pouco antes da inauguração da Ponte de Oresund, entre Copenhaga e Malmo, em 2002, com tabuleiro para auto-estrada, e outro para caminho de ferro. Enfim, a sageza do Ministro acabaria por ter sido bem recompensada, tendo integrado os quadros gerentes do grupo concessionário da ponte Sacavém-Montijo.
6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?
Gostaria de voltar à questão de como se “ganha o Espaço destruindo o Tempo”. Com um grupo de alunos, eu proporia o seguinte. Na cidade de Lisboa, todos comprariam (caso não tivessem Passe Mensal) um Bilhete de 24 Horas. E fariam o trajeto ponta-a-ponta das quatro Linhas de Metro existentes. Tomariam nota do Tempo que investiram para o fazer. E além disso, em alguns pontos selecionados vizinhos das estações, procederiam a um pequeno “recenseamento” das atividades existentes. Depois, fariam trajetos equivalentes à superfície, tanto quanto o possível, mas utilizando o Autocarro. Tomariam nota do Tempo. Depois fariam duas ou três viagens em corredores de Transporte Urbano desprovidos de “Modo em Sítio Próprio”, parando em locais selecionados, no sentido de registarem as atividades existentes. Claro, alguém já realizou de forma sistematizada semelhante tarefa: a “Dinâmica Funcional da Cidade de Lisboa” do Professor Jorge Gaspar é precisamente isso. Mas gostava de sentir que os mais novos percecionassem parte no terreno, interrogando-se porque motivo temos uma capital tão mal equipada de Transporte em Sítio Próprio. Lá teria de lhes explicar que mesmo sem recorrer a investimentos muito pesados como o Metro, poderíamos redescobrir o Eléctrico, como o fizeram cidades Francesas, Espanholas e Britânicas. Mas que para tal acontecer seriam imprescindíveis duas condições: Planeamento Eficaz e coragem política para conter o monstro automóvel, reordenando o trânsito à superfície. Creio que temos ainda um longo caminho a percorrer.