#26 Armindo Alves

Armindo dos Santos Alves, 60 anos, nasceu no Concelho de Góis e reside no Concelho de Loures. Licenciado em Geografia Física e Planeamento Regional e Local pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde também frequentou o Mestrado Geografia Física e Gestão do Território. Pós-graduado em “Sistemas de informação geográfica” no IFQ, e em “Programmer cumputer science” no ITA. Cursou ainda Cartografia, Geodesia e Topografia no Instituto Geográfico do Exército. É Técnico Superior na Câmara Municipal de Loures. Exerceu funções de Adjunto do Presidente da Câmara e integrou comissões na AML e ANM em âmbitos como Proteção Civil, Gestão da Orla Costeira e Estuários, Recursos Hídricos e Ambiente. Formador do Centro de Estudos e Formação Autárquica (CEFA). Atualmente é Adjunto do Secretário de Estado do Ambiente.

1. Comente um livro que o marcou ou cuja leitura recomende

Não consigo dizer que houve um livro que me marcou. O que verdadeiramente me marcou foi o hábito da leitura quase compulsiva de muitos e muitos livros. Os primeiros que a memória me faculta foram da coleção “Os Cinco” da Enid Blyton, lidos noite fora e de baixo dos lençois e cobertores com uma lanterna, para o meu pai não dar conta e saber quanto eram longas e saborosas as noites de aventura.

A leitura permitia e acelerava a imaginação. Esta percorria frenéticamente novas e diferentes paisagens descritas, subia montanhas, mergulhava em oceanos e florestas, andava em cidades que se esticavam em direção ao céu ou que flutuavam sobre águas de um qualquer rio ou mar. A leitura revelava aventuras em planícies geladas ou desertos tórridos, em momentos calmos e outros tempestuosos. O Mundo revelava-se nas leituras, tinha cores e cheiros associados. Era tempo ainda de um pobre registo audiovisual que suportasse um conhecimento mais preciso. Mas o livro abria as portas mais amplas desse tempo, com eles dávamos a volta ao mundo, sabiamos de outros povos, outras organizações, outras culturas, outros pensares. Os livros, a sua leitura, estimularam a curiosidade, base de todo o conhecimento a consolidar.

Mais que comentar um livro, refiro-me ao ato de ler e de como muitos e vários os livros me marcaram. Aspeto que teve importância fundamental na amplitude das leituras, foi a chegada da liberdade no ano de 1974, que me apanhou adolescente e me ajudou a abrir todas as portas, incluindo a do conhecimento e de temas até aí fechados. De repente, entravam novidades todos os dias, que era preciso “digerir”, compreender.

Nesse tempo (como sempre) aprender era fundamental para intervir na sociedade, para construir novos e diferentes futuros. Cresci, com a vida … os livros. Da poesia de Antóneo Gedeão, meu professor de Fisico-Quimica no Liceu Pedro Nunes e que tinha como verdadeiro nome Rómulo de Carvalho, aos romances de Vergílio Ferreira, meu professor de Portugês, passando pelos de politica “pura e dura”, como Engels, Marx ou de realidades mais próximas que Torga ou Redol delapidavam para nossa compreensão. Foram por isso muitos os livros que me marcaram, os que me levaram à necessidade de compreender, conhecer e descodificar melhor as realidades vividas e percepcionadas que me conduziriam a ser Geógrafo.

A leitura de José Saramago, foi bom exemplo como promotor do crescimento desse conhecimento. Lembro-me de como “senti” a leitura de “Levantados do Chão”, ou como me diverti com a dinâmica de “desconstrução” geográfica de “Jangada de Pedra”, por sinal com detalhadas e belas descrições de parcelas de território peninsular. Das referências mais antigas, não posso deixar de referir Jorge de Sena, autor que antes de 74 era de difícil acesso e cuja obra me ajudou sempre ao desassossego que os pensadores livres sempre nos proporcionam. Dele lembro um livro de contos “Antigas e Novas Andanças do Demónio” a que retorno todos os anos pelo natal, para reler e bastas vezes apresentar o conto “Razão de o Pai Natal ter barbas brancas” e que segundo o autor é  “para os filosófos, como meditação demonológica acerca do VIII poema de “O Guardador de rebanhos” de Alberto Caeiro. Para as crianças grandes, como apólogo humorístico. Para os meninos pequenos, como verdadeiro conto de Natal”. Revejo-me um pouco nos três.

Num salto grande no tempo, refiro mais algumas obras e autores que me marcaram e ajudaram numa construção que colateralmente também é geográfica e que sugiro, porque partindo do presente fazem um exercício de antevisão do futuro. De dois autores alemães, economistas e jornalistas da Der Spiegel, o livro “A armadilha da globalização – o assalto à democracia e ao bem-estar social” de Hans-Peter Martin e Harald Schumann, prémio “melhor livro politico de 1997”, a que junto a leitura de Noam Chomsky “Neoliberalismo e ordem global” e a ainda “Quarta revolução industrial” de Klaus Schwab. Em conjunto, os três são suficientes para nos darem ótimas pistas de aprofundamento. De cariz predominantemente “económico/ financeiro/ politico”, são base fundamental para a compreensão de alguns dos processos em curso, de evolução das sociedades, seu desenvolvimento e consequentemente seus efeitos nos territórios, no ambiente e na vida das pessoas.  

A leitura de uma obra, no entanto, não produz obrigatoriamente e de forma igual ao leitor o mesmo resultado. A leitura de uma obra depende em grande medida do conjunto de referências culturais e experiências vitais experimentadas por aquele que lê. Para um livro de Filosofia é preciso alguém com disposição ou pré-requisitos para o saber filosófico, para se tornar numa boa escolha. Como para um livro de História ter verdadeira importância é preciso que do outro lado esteja alguém que tenha a compreensão que o passado é fundamental para o entendimento do presente. Por isso, salientei algumas das minhas referências, não enunciando muitas outras igualmente importantes ou até mais, mas que, por razão que desconheço, foram os que, em dado momento da minha biografia, falaram diretamente ao meu espírito. Sem dúvida, tiveram papel relevante na minha compreensão de mundo. No fundo, cada um deles ajudou à construção do que sou, porque o que somos é em muito o que conhecemos e sabemos.

2. Que significado e que relevância tem, no fez e no que faz, assim como no dia a dia, ser geógrafo?

Primeiro o significado, aspecto de natureza mais subjectiva e individual, como sentimos e percepcionamos o que somos, o que sabemos. É a visão de conjunto, eclética, agregadora, que liga, que interrelaciona varíaveis e lhes dá expressão quantitativa por vezes e daí qualitativa, avaliando, interpretando. Relevante é o conhecimento que possuímos, científico, cruzado com o vivenciado, de como facilmente trabalhamos com outras ciências próximas e o agregamos, para lhe dar robustez. Numa metáfora que espero seja feliz, tal como para termos “betão armado” precisamos de ter vários materiais como areia, brita, ferro e água, é o cimento (e algum tempo) que lhe dá a solidez do conjunto e transforma num produto coeso e robusto. Ser Geógrafo é ter conhecimento próprio, específico e ainda a capacidade de juntar conhecimentos, trabalhar em equipa, agregar e dar-lhe robustez. Seja na dimensão das ciências naturais, fisicas e ambientais, seja nas de natureza social e económica, é essencial o método de recolha, construção e uso dos dados, da informação, com o conhecimento a enquadrar tudo isso em referenciais, topográficos, cartográficos e sistemas, numa complexa relação de técnicas. Ser Geógrafo no dia a dia é tudo isso e a simples prática do conhecimento adquirido, da compreensão lata e integrada das realidades, consonantes com metodologias aplicadas a cada problema ou a cada matéria.

3. Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?

Sim reconhecídissima, até porque não me canso de o referir (riso). Quando a identificação do rigor no tratamento dos dados ou da informação se alia a uma disposição dialéctica e de certa forma tolerante, conseguindo conjugar lógicas de raciocínio, mais esquemáticas mas a que por vezes falta visões integradoras, quando a expressão de conhecimento aprofundado é afirmado sem necessidade de anular o conhecimento dos outros, quem tem alguma experiência de trabalhar em equipas pluridisciplinares identifica claramente um geógrafo(a).

É frequente que outros profissionais, sejam engenheiros, economistas, sociólogos ou geofísicos, tenham uma afirmação muito marcada do seu valor e conhecimento . Muitas vezes, ainda que muitas exceções existam, possuem visões e conhecimento muito segmentado e alguma intolerância ao que fica fora dos seus enquadramentos técnico-científicos. É certo que continuam a existir comportamentos corporativos, fechados, em alguns trabalhos ou funções, umns naturais e outros nem tanto, alguma dificuldade de trabalhar de forma pluridisciplinar, mas isso regista-se cada vez menos, felizmente. A presença de um geógrafo(a) não só impõe um ecletismo científico, como geralmente se afirma, reconhecidamente, como de um saber aprofundado, útil e tolerante, ou seja agregador e potenciador do trabalho em equipas pluridisciplinares. A expressão desse reconhecimento é o facto inegável do aumento gradual da integração de geógrafos em equipas de estudo e planeamento, nas mais diversas actividades e aos mais diversos niveis da nossa sociedade, economia e organização, privada e pública, que tem como uma tradução a ascenção de geógrafos(as) a cada vez mais lugares de maior responsabilidade e complexidade funcional.

4. O que diria a um jovem à entrada de Universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as suas perspetivas na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?

Diria que a sua formação, nomeadamente a universitária em Geografia, é estruturante e instrumental. Que o geógrafo que vier a ser, resultará dos conhecimentos, da apreensão de conteúdos, que aliás pode ser muito diversificado, que os irá estruturar, certamente! Que esses conhecimentos que vão adquirir são muito mais científicos que técnicos, ainda que as cadeiras técnicas tenham hoje se diversificado muito e ganho maior relevância, até na empregabilidade. Direi ainda que o que será fundamental aprender são hábitos de trabalho conjugados com metodologias científicas, que os acompanhem ao longo da sua vida e das atividades profissionais futuras. Se estiverem preparados, se tiverem conhecimento, se desenvolverem hábitos de tolerância para com outros saberes, se conseguirem trabalhar bem em equipa, se forem confiantes em si mesmos, naturalmente haverá reconhecimento e um melhor futuro.

Mas para esse futuro, o curso que fazem é instrumental no sentido em que ele (o curso formal) não é um fim em si mesmo, mas mais um instrumento num processo. Acabado o curso, não acabou nada. Começa, uma nova fase. O aluno procura com o curso uma empregabilidade imediata e no seguimento das matérias recentes estudadas, isso nem sempre é possível. Mas os hábitos de trabalho, as metodologias aprendidas podem ser usadas nas mais diversas ações, que acabam por ser também formativas do geógrafo na sua diversidade. Um exemplo, do que pretendo dizer: quantos Engenheiros da especialidade de construção civil são gestores de divisões, de departamentos, de empresas que nada tem que ver objetivamente com construção civil? Muitos! Nos seus cursos, eles como nós aprenderam a aprender, a ganhar novas competências em cima das de base. Sobretudo, estruturaram os seus percursos profissionais nos hábitos e metodologias de trabalho aprendidas nos seus cursos.

A busca renovada, diria até contínua, de conhecimento, será fundamental. Como a disponibilidade para apreender novas técnicas, novas práticas, novas abordagens, o uso de nova instrumentação, que considero decisiva. Quero repetir e realçar que o conhecimento nunca estará terminado, que um geógrafo tem objetivamente de alargar continuamente os seus conhecimentos, nos mais diversos temas e atividades, incluindo ação cívica, social e política, para poder ser o que deve, competente. Como diria alguém que cito de memória, mas não me lembro quem: “faças o que fizeres, faz bem!”

5. Queríamos pedir-lhe a escolha de um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser do âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha e comente-o, tendo em conta a sua perspetiva e análise como geógrafo.

Demografia, envelhecimento da população portuguesa, política nacional e europeia em migrações. A realidade demográfica portuguesa e a crise de refugiados. A Europa de interesses e contradições, na sua relação com a chegada de populações provenientes do Médio Oriente, de regiões subsarianas, em fuga de conflitos, de guerras (refugiados), da fome, de miséria, ou da seca, pela sobrevivência, ou simplesmente pela esperança. Contexto terrível, agravado pelas alterações climáticas. Por relação de proximidade, a Europa, o Mediterrâneo e África centram a nossa atenção, mas o tema tem hoje expressões de particular importância e gravidade nos movimentos humanos entre a América do Sul e Central com os EUA.

Escolhi este tema porque conjuga antiguidade e atualidade, pode ser analisado em diversas escalas e releva como a perspetiva do geógrafo pode ser importante nestes temas, nestes contextos. Antes de tudo, o geógrafo tem de sentir! Por mais objetividade que precise de ter, o geógrafo faz parte! Não paira acima! Não é só ciência e técnica! É praxis! É um dos que habitam este planeta que se quer de direito e onde se possa ter futuro e ser feliz, objetivo final. O geógrafo sente, pensa e age, constrói conhecimento! Inventaria e trabalha dados, estabelece relações espaciais, se é caso disso. Quem? Quantos? Idade? Necessidades? Escolaridade? Saúde? Onde estão? De onde vêm? Para onde vão? Que caminhos seguem? Que comida têm? Água? Conhecer para compreender!

Muitos, muitos meios e muitos saberes são precisos. O geógrafo é neste tema, nestes acontecimentos, da maior importância. A construção de soluções exige conhecimento adequado dos problemas, suas dimensões e características e, por isso, pode ajudar a identificar com outros as soluções mais adequadas. Importa considerar ainda a organização, a logística, a economia, os transportes, a segurança, a integração social, o emprego, ou seja, ação política. Os geógrafos não são e não têm características ou conhecimento homogéneo, naturalmente que muitos anseiam por atividades bem diferenciadas, mas estou convicto que seria muito importante estarem mais presentes nas instituições políticas representativas dos cidadãos e de poder. A participação do geógrafo nas ações de produção de conhecimento, de cidadania, de política, é da maior importância e em diversas escalas. Assentando numa sólida estrutura de conhecimento, ainda que muito diverso, tem um dever reforçado de participar, porque esclarecido nas obrigações de cidadania.

Um outro tema que podia ter sido a minha escolha é o das alterações climáticas. Quero aproveitar a circunstância para o realçar, especialmente o que respeita ao avanço e alargamento dos períodos de seca e o uso da água. Este é um assunto que enquadra, desde o recurso em si, aos seus usos, desde a sua gestão à economia, das estruturas de abastecimento público ou de rega à produção de energia, do tratamento e qualidade à quantidade, da poluição à saúde. Há poucos geógrafos nas diversas dimensões que este tema tem.

Os tempos são de grande dinâmica, as transformações são muito rápidas, de tal forma que os ecossistemas naturais ou sociais sofrem mutações muito grandes, num tempo tão curto que bastas vezes não existe tempo suficiente para se adaptarem. Também por isso nos falta um tempo natural para conhecer, absorver, compreender, integrar, as soluções.

6. Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?

Dependeria muito do tema, mas se fosse de âmbito alargado e o suporte financeiro fosse suficiente, os Açores seriam a minha escolha. Conjugava assim o prazer que proporciona a beleza natural, com os mais diversos aspetos da vulcanologia, geologia, morfologia, geotermismo, climatologia e ocupação humana. Ver e perceber bem o que se vê, os materiais, as formas, os processos, a exuberância natural, mas também a influência e importância antrópica, os pastos, os campos cultivados, a organização urbana, as atividades, as funções, as pessoas, a cultura, as tradições e o mar! Seria ainda a possibilidade de honrar a memória de um muito importante geógrafo português, António Brum Ferreira.