#14 André Fernandes

ANDRÉ FERNANDES

30/06/2017

Nasceu em 1982. É licenciado (2005) em Geografia e Planeamento Regional pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-NOVA) e Doutor em Geografia e Planeamento Territorial (2014) pela mesma instituição. É Investigador Integrado do CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (FCSH-NOVA) e Professor Auxiliar Convidado (2017) no Departamento de Geografia e Planeamento Regional da FCSH-NOVA. Foi Assessor do Gabinete do Secretário de Estado dos Transportes do XVIII Governo Constitucional (2009-2011).

 

1 - Comente um livro que o marcou ou cuja leitura recomende.

A identificação do livro que mais me marcou representa um verdadeiro desafio, uma vez que foram várias as obras que, em diferentes momentos do meu percurso (pessoal e profissional), me marcaram por razões distintas. Ainda assim, escolheria – e recomendaria – “Esteiros” de Soeiro Pereira Gomes, uma das obras pioneiras do movimento literário neorrealista português (a par de “Gaibéus”, de Alves Redol) que li no início da minha juventude.

Trata-se de um livro de discurso fácil e beleza simples, que expõe a dureza das condições sociais através do relato da situação (diria, da condição) de um grupo de crianças forçadas a trabalhar nos telhais para sobreviver: o Gineto, o Gaitinhas, o Sagui e outros… os que se tornariam homens sem nunca terem tido a oportunidade de ser meninos e a cujos filhos Soeiro Pereira Gomes dedicou a obra. E esse foi, talvez, o principal motivo pelo qual o livro me marcou. Porque sendo oriundo de uma comunidade ribeirinha da margem sul do Estuário do Tejo – Sarilhos Pequenos –, encontrei em “Esteiros” a descrição crua dos relatos que me habituei a ouvir desde criança. Os relatos de percursos de vida similares das gentes dos esteiros, tal como o Bando do Gineto. Os relatos daqueles que – até à geração nascida no início dos anos 1950 – ainda em meninos se iniciavam, sem grandes alternativas e com poucas exceções, na dureza da vida do rio – nas fragatas –, para sobreviver e ajudar a família a sobreviver.

Curiosamente – ou não –, muitos anos mais tarde, um pequeno livro que publiquei – em coautoria – sobre “As Embarcações Tradicionais do Estuário do Tejo: Contributos para a compreensão da sua evolução funcional”, acabou por ser dedicado precisamente “Aos Arrais, Camaradas e Moços do Tejo, também eles homens que nunca tiveram oportunidade de ser meninos”...

 

2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia a dia, ser geógrafo?

O facto de desenvolver investigação e atividade docente na área faz com que a Geografia seja uma presença constante. Curiosamente, é no âmbito dos diálogos interdisciplinares (com a História, a Arquitetura, as Ciências do Ambiente) que a minha perceção do que é “ser geógrafo” se torna mais evidente. Não tanto pela diferença de métodos, mas sobretudo pela forma como são problematizados e abordados os fenómenos em estudo.

 

3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento? 

Diria que no plano profissional tem existido um efetivo reconhecimento das competências que decorrem da minha formação em Geografia. Uma perceção que gostaria de colocar no plano das “razões de facto”, expressas principalmente nas oportunidades associadas à integração em equipas técnicas/científicas responsáveis pela elaboração de diversos planos, estudos e projetos nas áreas do ordenamento do território, planeamento de transportes, gestão da mobilidade e planeamento estratégico.

Considero, porém, que não devemos descurar o hiato existente entre este reconhecimento profissional de competências e o reconhecimento social do papel do geógrafo. Neste domínio, entendo que temos ainda um exigente caminho a percorrer. Um caminho cujo sucesso dependerá, em boa medida, da capacidade da Geografia se afirmar enquanto “área do saber” de referência no contexto de alguns dos desafios societais que marcarão as agendas, a diferentes níveis, no longo prazo. É, por exemplo, o caso da adaptação às alterações climáticas.

 

4 - O que diria a um jovem à entrada de Universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as suas perspectivas na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspectivas, responsabilidades e oportunidades?

A formação em Geografia é uma formação abrangente, o que permite a aquisição de um conjunto de conhecimentos sólidos em diferentes áreas (geomorfologia, climatologia, ecologia, ordenamento do território, transportes, sistemas de informação geográfica…). Algo que confere ao aluno, ao futuro geógrafo, uma boa capacidade de adaptação em diferentes contextos profissionais. E esta capacidade de adaptação, assim como a capacidade de compreender e comunicar em diferentes “áreas do saber”, constitui uma importante mais-valia e um aspeto diferenciador na nossa formação. Quanto às perspetivas, de certa forma acabei por responder na pergunta anterior, ao colocar o acento tónico na capacidade de afirmação da Geografia e da “comunidade geográfica” no contexto das oportunidades inerentes aos desafios societais que globalmente enfrentamos.     

 

5 - Queríamos pedir-lhe a escolha de um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser do âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha e comente-o, tendo em conta a sua perspetiva e análise como geógrafo.

Gostaria de destacar o tema das alterações climáticas, porquanto se conta entre os principais desafios da Humanidade, exigindo respostas concertadas a diferentes escalas (internacional, nacional, regional e local), tanto no domínio das agendas da mitigação como da adaptação. Focando-me nesta última, a sua acuidade é indissociável da reconhecida inevitabilidade de alguns dos efeitos das alterações climáticas globais, cujas manifestações se fazem sentir a nível local. Como é sabido, o aumento da frequência de eventos climáticos extremos, como os episódios de precipitação excessiva e as ondas de calor, ou a subida do nível médio do mar, estão entre os efeitos destas alterações que exigem respostas diferenciadas a nível local, decorrentes das especificidades de cada território.

Ora, os desafios a este nível são múltiplos, configurando um domínio de atuação onde a Geografia e os geógrafos têm, com certeza, um papel e contributos relevantes no sentido de assegurar o reforço da resiliência territorial. Destacaria, como exemplos, os seguintes domínios: avaliação dinâmica dos riscos associados às alterações climáticas; estudo e avaliação das diferentes opções de adaptação que suportem os processos de tomada de decisão e informem os instrumentos de planeamento territorial; desenvolvimento e implementação de mecanismos de participação que garantam o envolvimento ativo da comunidade nas estratégias de adaptação.

Por fim, não poderia ainda deixar de assinalar um acontecimento recente associado ao tema das alterações climáticas. Refiro-me à comunicação por parte dos EUA da intenção de abandonarem o “Acordo de Paris” e, bem assim, os compromissos a este subjacentes. Algo que representa um importante retrocesso, tanto mais que os EUA são o segundo principal emissor de CO2 a nível mundial, apenas superados pela China.    

 

6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?

Sem dúvida que recomendaria as frentes ribeirinhas do Arco Ribeirinho Sul do Estuário do Tejo, por várias razões. Destacaria, em primeiro lugar, o facto de estar em causa um território que exprime, de forma notável, os processos de interação entre o Homem e o Meio. Concretizando, ao inserir-se num espaço estuarino é particularmente evidente a influência das propriedades gerais destes espaços na natureza das funções e atividades que aqui se desenvolveram ao longo do tempo.

Em segundo lugar, destacaria o facto de este território ter “cristalizado” um conjunto de elementos representativos dos diferentes ciclos de ocupação destas áreas de interface terra-água, o que facilita a sua compreensão e torna possível a sua observação: as funções litorais, as atividades agrícolas e as atividades comerciais (com as estruturas das antigas salinas, campos agrícolas, pequenos portos e cais, armazéns comerciais e embarcações tradicionais de tráfego fluvial); as atividades do ciclo de industrialização arcaica (com as estruturas dos antigos moinhos de maré, estaleiros navais tradicionais e unidades de secagem natural de bacalhau); as atividades do primeiro ciclo de industrialização moderna (com destaque para as unidades industriais corticeiras e conserveiras); as atividades do segundo ciclo de industrialização moderna, correspondentes aos três grandes complexos industriais, isto é, a Margueira (construção/reparação naval), a Siderurgia Nacional e a CUF/Quimiparque, a que acrescem os vários terminais portuários especializados.

Em terceiro lugar, destacaria o facto de a incidência territorial diferenciada das atividades inerentes a cada um destes ciclos tornar possível a compreensão da influência, não ubíqua, de diferentes fatores de natureza endógena e de natureza exógena ao contexto local. Entre os primeiros encontram-se, por exemplo, a configuração física do interface terra-água ou a orografia e espaço disponível. Entre os segundos encontram-se, por exemplo, a acessibilidade externa, a procura regional ou o potencial marítimo do espaço adjacente.

Em quarto lugar, destacaria a possibilidade que este território nos oferece de interpretar os processos de revitalização de frentes ribeirinhas no período pós-industrial, nomeadamente no que diz respeito à natureza diferenciada destas intervenções e à forma como o substrato herdado dos ciclos anteriores influenciou estas intervenções.