#11 João Guerreiro

João Guerreiro

Março de 2017

João Guerreiro, licenciado em Geografia, mestre em Ordenamento Rural e doutor em Economia, variante Economia Agrária. Iniciou a sua atividade profissional no Ministério da Agricultura. Após o mestrado integrou o corpo docente da Universidade do Algarve. Foi Presidente da Comissão de Coordenação da Região do Algarve e Reitor da Universidade do Algarve. É Professor Catedrático da Universidade do Algarve.

1 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende

É dificil encontrar “o” livro que me tenha marcado para toda a vida. Sou um pouco caótico no ritmo e na diversidade das leituras. Mas acho que estas vão marcando o percurso de vida, sendo dificil por isso resolver a equação que é colocada na pergunta apenas com um resultado.

Durante a minha passagem como estudante pela Universidade, antes do 25 de abril, não poderei deixar de citar dois pequenos livros: “Pensar Portugal Hoje” (João Martins Pereira) e “Por onde vai a economia portuguesa” (Francisco Pereira de Moura). Aliás, julgo que contribuiram para formar/despertar toda a minha geração. 

Naturalmente que gostava de evocar a dupla Orlando Ribeiro/José Matoso pelo contributo decisivo para o conhecimento do território português, sobretudo apresentando explicações para o mosaico que hoje é o nosso país. O “Portugal, o Mediterrâneo e o Atrântico” e a “Identificação de um País” aparecem, nesse sentido, como marcas grandes dessa reflexão. São livros que releio com enorme prazer.

No que respeita ao detalhe das caracteristicas territoriais, a minha origem “sulista” levou-me a melhor conhecer os autores que se dedicaram a caracterizar as regiões do Alentejo e do Algarve. O final do século XIX e o inicio do século XX estão repletos de textos que traduzem as dinâmicas territoriais, elementos importantes para entender as adaptações introduzidas nas realidades biofísicas pelas sucessivas presenças nestas regiões ao longo dos séculos, avaliar as mudanças introduzidas e perceber melhor a situação atual.

Na literatura, também as minhas opções vão variando ao longo do tempo. No que respeita à literatura de expressão portuguesa, durante alguns anos (anos 80 e 90, do século passado) os autores africanos prenderam entusiasticamente a minha atenção. Mia Couto, Pepetela e Germano de Almeida são talvez os que marcaram bem esse período. A literatura africana apareceu então com enorme pujança, convocando não só as problemáticas coloniais onde se confrontaram racionalidades dificilmente conciliáveis, mas também os aspetos insólitos e algo inesperados da transição. 

Neste momento vagueio por alguns livros de história global. E na literatura procuro livros de contos. Neste último dominio, merece menção especial as edições recentes de Teresa Veiga, oferecendo contos magnificamente escritos e muitos deles também interessantes pela forma como aborda insólitas problemáticas sociais.

 2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?

Julgo que com uma palavra poderia responder a esta questão: diversidade. 

A área de formação em Geografia abrange dominios aparentemente tão diversos mas que na verdade se complementam e se pretendem explicar mutuamente.  

Por isso, acho que nas diferentes tarefas que fui desenvolvendo ao longo da minha vida profissional (que já ultrapassa os 40 anos!), a formação de geógrafo tem sido fundamental. Para evitar sectarismos cientificos, para encontrar soluções cientificamente convergentes, para entender posições muitas vezes distantes e fundadas nos diversos mundos que condicionam a nossa vida.

Tendo dedicado uma parte da minha vida profissional à gestão universitária, onde muitas vezes o sectarismo impera e onde há uma tendência de muitos para valorizar certas áreas do saber (aquelas que interessam aos que as defendem), a possibilidade de estabelecer pontes e de procurar convergências é também uma capacidade que os geógrafos normalmente evidenciam. Sobretudo porque conseguem entender linguagens diferentes e descortinar, na multiplicidade de perspetivas e de conceitos, os aspetos que podem gerar aproximações e valorizar o que parece ser distinto.  

3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?

Na realidade o (pouco) uso que atualmente dou à Geografia não permite esse “reconhecimento”. Mas admito que essa formação esteja implicitamente presente, designadamente em todas as questões que apontam para regularidades ou especificidades relacionadas com a distribuição de fenómenos nos diversos espaços. É uma tendência natural que está naturalmente presente. 

4 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?

Diria que deve assumir esse desafio com garra, sabendo que a universidade e as escolas de Geografia não produzem geógrafos “chave na mão” e que a passagem pela universidade é apenas um primeiro passo para decobrir, na plenitude, o que se poderá fazer como geógrafo. Julgo que ao longo das nossas carreiras profissionais se podem construir capacidades de afirmação e possibilidades de estruturação de novos dominios, naturalmente por sugestão ou por exigência da sociedade onde nos inserimos. 
Não sendo uma caracteristica exclusiva dos geógrafos, julgo que os horizontes que a nossa disciplina pode abrir são um elemento interessante para a abrangência que os caracteriza. Por isso, devemos valorizar essa capacidade.  

5 - Queríamos pedir-lhe que escolha um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser de âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha, e comente-o, tendo em conta em particular a sua perspectiva e análise como geógrafo.

Talvez a tensão que hoje em dia aumenta e que afecta os povos da Europa. Revelando que, não obstante as diversas ideologias em presença, prevelecem as racionalidades dos antigos Impérios (Russo e Otomano) e as clivagens entre as três religiões monoteístas. 

Não é em vão que se identifica o presidente da Russia como o novo Czar. E, por outro lado, reconhece-se a força que a comunidade turca representa, não só no âmbito do respetivo território, como também nos países onde estas comunidades têm uma forte expressão: Alemanha e Holanda.

Não obstante reconhecermos a estabilidade da fronteira de Portugal desde que, há 750 anos, o Algarve foi anexado a Portugal, o que é certo é que na Europa, pelo contrário, as fronteiras continuam a mexer. Recentemente foi a Crimeia que regressou a uma situação que tinha sido alterada por Khrushchev, nos anos 50, colocando-a sob tutela da Ucrânia e enviando para esse território um contingente significativo de russos. Mas a procissão ainda está no adro, se atendermos a todas as zonas de influência desses ora convocados Impérios. Situação a que se poderá adicionar os nacionalismos crescentes de outros países (Espanha/ Catalunha e Reino Unido/ Escócia), num quadro que poderemos designar, aproveitando uma reflexão recente, por “egoismo territorial”. 
A Europa está em crise e anunciam-se muitas alterações e ajustamentos nos próximos anos, o que poderá agravar as tensões que hoje se verificam. 
 
6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?

Recomendaria duas áreas geográficas. O Vale do Douro, no Norte. E a Beira Serra no Algarve.

O Vale do Douro pela sua beleza e pelo que traduz do esforço humano para estruturar um sistema produtivo único, aproveitando as encostas e cobrindo-as com plantações de vinha, sempre com o cuidado extremo de garantir a preservação do pouco solo que existe. O seu aproveitamento é função da orientação das suas encostas e a paisagem é magnifica como testemunho de como o homem pode moldar a natureza. A presença da arboricultura mediterrânica (oliveira, amendoeira e alfarrobeira) marca bem as condições bioclimáticas deste vale. 

A Beira Serra, no Algarve, é igualmente uma zona interessante pelo confronto e diversidade de situações naturais e humanizadas que regista. Faz a transição da Serra para o Barrocal. E essa transição, preenchida com materiais geológicos especificos, cria condições para o estabelecimento dos núcleos urbanos. Como área de charneira, a população que aí se fixa beneficia de recursos variados proporcionados pela confluência da Serra, do Barrocal e das carcaterísticas da gola triássica. No Algarve, os principais núcleos urbanos que se localizam afastados do Litoral (com exceção de Loulé) estão todos ubicados na Beira Serra. É nessa zona que melhor se pode aproveitar o mosaico de recursos, designadamente a água, os solos férteis, a diversidade da vegetação espontânea, etc. É uma área a visitar e a estudar.