#09 Fernanda Cravidão
Fernanda Cravidão.
23/01/2017
Doutorada em Geografia pela Universidade de Coimbra (1988) e Professora Catedrática desde 1997.
Coordenadora do Doutoramento em Turismo, Lazer e Cultura.
Gestora da Cátedra da UNESCO Turismo Cultural e Desenvolvimento em rede coordenada por Paris I, Sorbonne.
1 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende
Não é fácil encontrar um livro. São tantos! Há uns que marcam na primeira leitura outros só mais tarde lhe encontramos o “verdadeiro” sentido. Em casa dos meus pais havia (há) uma biblioteca pequena, mas onde encontro algumas das obras que me têm acompanhado pela vida. Foi ai que descobri, precocemente, Ferreira de Castro, Aquilino e Euclides da Cunha. O tempo se encarregaria de me fazer chegar Carlos Oliveira, Alves Redol ou Vergílio Ferreira, entre muitos outros. E o tempo se encarregaria, também, de me mostrar como essas leituras permitem outras leituras do país, perceber os territórios com olhares diferenciados e também captar, às vezes, num olhar breve, o país de ontem e o país de hoje.
Quando, há cerca de 25 anos, fui pela primeira vez a Manaus reli A Selva de Ferreira de Castro. O percurso feito rio acima, envolvida nas redes que acolhem os passageiros, trouxe as imagens que a leitura me tinham permitido construir. Nada parecia ter mudado. Quando no início dos anos 90 orientei um seminário sobre emigração, um dos livros que referi e discuti com os alunos foi essa obra, escrita em 1929.
A Selva continuou a fazer parte do meu percurso. Como geógrafa, como viajante, como pessoa. E cruza-se também pelo cinema através do filme Fitzcarraldo do realizador Werner Herzog, de 1982. Ambos, Ferreira de Castro e Herzog, têm como território de referência a mesma Selva Amazónica e como traço comum o Sonho. Sonhos diferentes, é certo, mas que se entrelaçam na relação quase utópica com a floresta. Enquanto na obra de F. de Castro a selva é simultaneamente lugar de produzir riqueza e miséria humana, W. Herzog traz-nos para o ecrã a utopia de um melómano que contra a corrente transporta a “Europa” de Manaus para Iquitos. Ao cortar a floresta para fazer transportar o barco Molly Aida entra numa luta balizada pelo ritmo das chuvas, de seis em seis meses, uma batalha constante, marcada pela malária, pelos autóctones e pela selva. Tal como parte das personagens de Castro.
Não tenho o livro da minha vida! Refiro um dos que me marcou mais, Morte em Veneza de Thomas Mann, escrito em 1912. Nesta obra, levada ao cinema (1971) por Luchino Visconti, o autor parece fazer uma Geografia interior sempre em busca do eternamente belo.
Um livro que sempre aconselho.
2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia a dia, ser geógrafa?
Pertenço a uma geração que acompanhou muitas mudanças politicas, económicas, sociais, no Mundo e em Portugal. A Geografia também fez esse percurso, embora com tempos e opções diferentes. As preocupações de natureza ambiental, a gestão de recursos, os grandes ciclos migratórios, o crescimento quase sempre desordenado das cidades, o abandono progressivo do mundo rural, mudam as paisagens, alteram a funcionalidade dos territórios e obrigam-me a olhar e refletir de outros modos, sobretudo para tentar perceber qual vai ser o futuro destes “novos” espaços. Quando no inicio do ano letivo faço uma pequena saída de campo pela cidade é um desafio sempre novo, perante alunos do 1ºano, explicar de uma das varandas da Universidade que a cidade é muito mais que o território que quotidianamente percorrem. O rio que separa (ou), a dualidade retratada na paisagem cultural da Alta e da Baixa, os novos centros comercias que se avistam de quase toda a cidade. Mas também a “nova“ cidade que parece renascer muito à custa do turismo que a descobriu. Acho que também é nestes momentos, em que a linguagem tem de ser simples, sintética, objetiva, apelando a muitas áreas científicas, que dou conta, com alegria, que sou geógrafa.
3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Para além da minha atividade como docente e investigadora em Geografia, onde tenho a possibilidade de transmitir conhecimento no sentido de ajudar a perceber a organização dos territórios, a importância da sua gestão e planeamento, tendo sempre como preocupação o bem estar das populações, ou noutras atividades a que tenho sido chamada, a minha qualidade é sempre a de geógrafa. Nas relações entre o território e as populações, hoje tão presentes em pós graduações que vão da Medicina, a Psicologia, a Arquitetura, ou muitos outros cursos, é sempre a dimensão territorial que distingue e naturalmente faz a sua descodificação de um modo científico. Neste sentido julgo que tem sido como geógrafa que a minha participação é solicitada e por isso reconhecida.
Quando nos anos 90 o país teve o desafio dos PDMs, foi na qualidade de geógrafa que colaborei em vários desses projetos. Mas, neste aspeto, é de todo obrigatório referir aqui o trabalho e o empenho pioneiros de Jorge Gaspar no reconhecimento pelo trabalho dos geógrafos. As equipas que constituiu, coordenou, nacionais e internacionais, no domínio do planeamento e gestão do território, foram os pilares para muitos outros que se lhe seguiram. Quando hoje me solicitam a indicação de um geógrafo para a realização de trabalhos externos desde a instituição universitária, sinto que de facto o trabalho foi e é reconhecido.
4 - O que diria a um jovem à entrada de Universidade a propósito da formação universitária e Geografia, sobre as perspectivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspectivas , responsabilidades e oportunidades
Desejei sempre, e tive, alunos do 1º ano de Geografia. Permite estar em contacto com gerações diferentes, à entrada na Universidade. Com alunos cujas origens geográficas e sociais muito se têm alterado. E como sempre faço, pergunto de onde são, porque escolheram geografia… Sublinho que ser geógrafo é ser simultaneamente um observador meticuloso, não deixando de olhar para o Mundo. Ser geógrafo é também ultrapassar as fronteiras da “Geografia”. Viajar por outras disciplinas, entre as quais, continuo a pensar, a filosofia e a matemática deviam ser obrigatórias, não só para estudantes de Geografia, mas para todos. Transmito-lhes o que julgo ser fundamental na sua formação e que pode ser adquirido na literatura, nos clássicos. Dir-lhe-ia que a geografia nos permite conhecer muitos mundos, perceber as diversidades culturais, as desigualdades económicas e sociais, e por isso também o ajudaria a construir um cidadão mais envolvido, preocupado, solidário, porque ser geógrafo é também não ser neutro.
Os desafios que hoje a sociedade coloca – a escalas diversas - permitem e exigem uma dimensão interdisciplinar, onde os geógrafos
Têm um lugar certo. Cabe-lhes, sobretudo aos mais jovens, procurar e consolidar estes desafios. Há porem uma dimensão que não deve ser esquecida nem menorizada. Ter jovens geógrafos com as competências que hoje a profissão exige, passa, também, por ter geógrafos bem preparados para o ensino da geografia pré-universitária. Esta é também uma função da Universidade.
5 - Queríamos pedir-lhe a escolha de um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser do âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha e comente-o tendo em conta em particular a sua perspetiva e análise como geógrafa.
Como tema proponho as questões demográficas que desde há muito se colocam no mundo, e particularmente na Europa e Portugal. Sempre a população preocupou políticos, economistas, geógrafos. E filósofos. Recordo de modo rápido algumas das passagens da Republica, de Platão, na edição da Fundação Gulbenkian traduzida por Maria Helena da Rocha Pereira, onde são sugeridas medidas para impedir o crescimento da população ateniense e ”manter os mais fortes”.
- “Portanto temos de instituir festas nas quais juntaremos as noivas e os noivos, e de executar sacrifícios, e os nossos poetas hão-de compor hinos apropriados à celebração dos esponsais. Quanto ao numero de matrimónios deixá-lo-emos a cargo dos governantes, para que mantenham o mais possível a mesma cifra de homens, tendo em linha de conta as guerras, doenças, e outras perdas semelhantes, e a nossa cidade não se torne, na medida do possível, maior nem menor…”
Trata-se de um tema que tem atravessado a história das sociedades, produzido os mais diversos debates, mas que é sempre atual.
O século XX, sobretudo a segunda metade, foi para muitos países um tempo de profundas mudanças. Portugal não fica alheio a estes processos que no designado mundo ocidental foi caminhando para a progressiva melhoria da qualidade de vida das populações em geral. Porem, este processo de mudança positiva não ocorre em simultâneo nem no tempo nem nos territórios. Em Portugal, o envelhecimento demográfico a que assistimos desde a segunda metade do século XX e de um modo mais acelerado nos últimos 25 anos, tem provocado irreversibilidades sociais, novas questões que se retratam no envelhecimento e abandono dos territórios. Todos os territórios. O mundo rural foi progressivamente abandonado, criando paisagens mortas e sem gente. Os que resistem vivem em condições precárias, onde a insegurança está quase sempre presente. Parecendo, por vezes que regressámos ao país dos anos 50.
Apesar das intervenções pós 25 de Abril, sobretudo ao nível do poder autárquico, e sempre louváveis, as cidades, têm visto o seu espaço vivido, quase sempre o centro histórico, a envelhecer, a esvaziar-se, num processo que parece não ter solução. Ainda que haja exemplos de contrariar estes processos, sobretudo com o turismo, a reabilitação urbana e a reorganização de novas atividades de serviços, trata-se, do meu ponto de vista, de um processo onde está ausente uma estratégia de intervenção sistemática, organizada, balizada no tempo e avaliada permanentemente. Para quem sempre trabalhou com as relações entre a população, o território e o desenvolvimento, este é do meu ponto de vista um dos problemas mais graves com que o pais se defronta e onde os jovens, ausentes, estão naturalmente afastados de participar.
6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?
Portugal tem uma diversidade geográfica tão rica que qualquer que seja a viagem é sempre um desafio para quem já conhece como para quem visita pela primeira vez.
Sempre gostei de fazer viagens de estudo a Trás os Montes. Pelos horizontes abertos, pela estética da paisagem, pelo vale da Veiga da Vilariça, pela influência da literatura, Miguel Torga por exemplo, e pelo trabalho de Vergílio Taborda que li quando aluna de Geografia. Mas também pelas mudanças que de um modo paulatino se foram instalando no território e a que não a são alheios, a nova rede viária, o turismo, a gastronomia, a recuperação patrimonial, as estâncias termais, a proximidade do vale do Côa. Esta é sempre uma hipótese em aberto quando se discute “a próxima viagem“.
O ano passado fiz uma viagem de estudo ao Alentejo, onde Mértola foi paragem demorada. Mértola continua ser um lugar privilegiado para geógrafos. Sobre o Guadiana, retrata a importância geoestratégica de um lugar de fronteiras, físicas, políticas e culturais. O trabalho desenvolvido pelo Centro de Estudos Islâmicos e do Mediterrâneo permite-nos não só perceber o significado daquele antigo porto, como e sobretudo a convivência multicultural que o enriqueceu. Mértola (Myrtilis) foi, de resto, durante alguns tempos sede do pequeno reino de Taifa. Terá sido esta influência islâmica que lhe marcou o traço urbano que ainda hoje mantem.
Por último talvez um dos meus lugares de eleição: o Promontório de Sagres. Visito-o com alguma frequência. Neste pequeno fim de quase tudo percebe-se a posição de Portugal no Mundo e na Europa. A importância do Mar. A proximidade de Africa e a periferia na Europa. Por estranho que pareça, fico sempre com a sensação que estou no centro do Mundo!