#07 Isabel Martins

Nascida em 1968. Licenciada em Geografia pela Faculdade de Letras da UP. Doutorada em Geografia Humana pela Faculdade de Letras da UP. Desempenha presentemente as funções de Diretora do Departamento de Planeamento Urbano da Câmara Municipal do Porto. Investigadora, membro integrado do CEGOT - Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território da Universidade do Porto, Minho e Coimbra. Representante dos Municípios Portugueses no Painel das Cidades do Projeto “Auditoria Urbana” da Comissão Europeia (2008-09). Elemento do Grupo de Trabalho internacional Urban Research, das Eurocidades (2003-05). Assistente Convidada da Faculdade de Letras da UP (2001-03). Colaboradora do Centro de Informática, Estatística e Métodos Quantitativos da CCDR_N (1991-96).

Autora e co-autora de diversos artigos em livros e revistas nacionais e internacionais, em particular sobre o tema da avaliação da qualidade de vida urbana e sistema de indicadores urbanos.

1- Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende

Li a “A ideia de Justiça” de Amartya Sen, publicado em 2009, na altura em que finalizava já a minha dissertação de doutoramento sobre a avaliação da qualidade de vida em cidades. No momento certo, este livro despertou-me aquela dose de inquietação intelectual e de energia mobilizadora que somente alguns autores conseguem estimular nos seus leitores.

Nesta sua obra, Sen aborda o tema da justiça social, desenvolvendo uma abordagem racional teórica que se veio a revelar muito estimulante para o debate global em torno do papel das políticas públicas para a construção de sociedades menos iniquas, capazes de proporcionar aos seus membros as oportunidades para a realização dos projetos de vida individuais e coletivos.

Partilho aqui um pequeno excerto que mantenho destacado no meu exemplar deste livro e que resume a ideia base que se encontra por detrás do discurso de Sen sobre as Liberdades e Capacidades humanas: “O que nos toca, e é razoável que o faça, não é darmo-nos conta de que o mundo fica aquém de um estado de completa justiça – coisa de que poucos têm esperança – mas o facto de que, à nossa volta, existam injustiças manifestamente remediáveis e que temos vontade de eliminar”. E sobre isto, o geógrafo tem certamente um papel a desempenhar...

2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?

Da formação de base dos geógrafos destaco três vertentes que considero diferenciadoras e que, no meu caso pessoal, se têm vindo a revelar um importante suporte para a atividade que tenho vindo a desenvolver, sobretudo nos anos mais recentes, na área do planeamento urbano. Uma primeira vertente tem a ver com um contacto com referências teóricas situadas num espetro alargado - fora do campo de produção da Geografia – sobre as quais tendem a ser pedidas interpretações e leituras críticas (no domínio de várias Ciências Sociais mas também das ciências da Terra e do Ambiente). Desta exigência resulta um à vontade com outras linguagens e conceitos, muito facilitadores da apreensão e capacidade de integração de conhecimentos provenientes de outros domínios científicos, para já não falar numa frequente apetência pelo debate interdisciplinar. Uma segunda vertente tem a ver com as aprendizagens no plano das metodologias e das técnicas de trabalho, que moldam competências analíticas específicas,  cada vez mais reconhecidas à nossa comunidade profissional. Finalmente a terceira vertente a sublinhar prende-se com a forte componente de trabalho aplicado tradicionalmente exigido, enquadrado em diferentes temas, contextos e escalas territoriais, que tende a forjar uma versatilidade (e um gosto particular) para enfrentar novos desafios analíticos e espaciais. Ainda a respeito desta última vertente, impõe-se uma referência á modalidade de “trabalho de grupo”, muito exercitada na nossa formação de base, e que permite desenvolver competências de trabalho colaborativo, de partilha de competências e responsabilidades, etc., cada vez mais requeridas em “ambientes de produção” profissional, frequentemente de natureza multidisciplinar.

Reconhecer estas vertentes diferenciadoras não significa encará-las como uma herança genética, assegurada. Pelo contrário, deverá servir para orientar opções de permanente questionamento e renovação, seja ao nível da abordagem teórica, seja no plano das metodologias e das ferramentas de trabalho.

3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?

Pelo facto de, nas áreas em que tenho trabalhado e nas funções desempenhadas, a presença dos geógrafos ser claramente inferior à de outros grupos profissionais, não estranho que frequentemente me seja associada um outro tipo de formação. Eu é que trato logo de clarificar…

4 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspectivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?

Quer a um, quer a outro, diria que novas perspetivas, responsabilidades e oportunidades de trabalho dependerão certamente de fatores exógenos dificilmente previsíveis, mas também, e este é o ponto que aqui interessará mais, da capacidade dos elementos da nossa comunidade profissional se abrirem frente a novos desafios. Frequentemente, nas equipas técnicas, ao geógrafo são reservadas funções ao nível da recolha, estruturação e análise da informação, sendo mais raras as incursões fora do âmbito do diagnóstico territorial (mais ou menos estratégico). Atendendo à evolução recente das políticas públicas que, em síntese, poderemos associar às ideias-chave de integração, enfoque territorial, governança e monitorização, não faltam apelos para que os geógrafos contribuam mais ativamente nas fases subsequentes da conceção das propostas operativas e do planeamento da ação.

5 - Queríamos pedir-lhe que escolha um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser de âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha, e comente-o, tendo em conta em particular a sua perspectiva e análise como geógrafo.

Um tema que nos últimos anos me tem interessado particularmente tem a ver com o crescente impacto de certos indicadores – económicos, sociais e ambientais – no debate político-mediático, bem como nas próprias opções e discurso do cidadão comum. Neste contexto, e como geógrafa, preocupa-me uma frequente simplificação das análises (considerando-se que os números falam por si, o que raramente acontece) bem como a ausência de uma clarificação dos pressupostos teóricos e das opções de natureza técnica assumidas na sua construção.

Sendo certo que tal nem sempre será possível, deverão ser feitos esforços para que, sobretudo nos casos em a utilização de indicadores surge associada à definição de políticas públicas, a construção dos indicadores não envolva apenas os especialistas mas também os utilizadores futuros dessas medidas – nomeadamente os cidadãos e os decisores políticos - em ambientes de aprendizagem coletiva. Aqui está mais um desafio que não deverá deixar de lado os geógrafos…

6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?

De múltiplas possibilidades que me ocorreram, opto por recomendar uma visita ao Vale de Campanhã, na zona oriental da cidade do Porto, território ao qual tenho dedicado especial atenção nos últimos meses e que torna muito atual o discurso de Sen invocado na resposta à primeira questão que me foi colocada.

Trata-se de um território relativamente ao qual não é possível ficar indiferente, pelas suas pessoas, pelos seus contrastes, pelas suas fraturas, pelas atmosferas e ambientes que oferece e, sobretudo, pelo desafio que lança de se conceberem novas políticas de intervenção inovadoras, que saibam tirar partido dos seus recursos e oportunidades.