#05 Miguel Bandeira
Professor Associado com Agregação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho; Vereador do Urbanismo, do Planeamento e Ordenamento, da Revitalização Urbana, do Património, da Mobilidade, e da relação com as Universidades, da Câmara Municipal de Braga; Investigador do CEGOT (Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território)
1 - Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende
Por volta dos cinquenta anos perguntaram-me qual tinha sido “o livro da minha vida”, e eu que tenho na leitura um garante da satisfação do dia-a-dia hesitei entre vários títulos, optando pelo que me pareceu ser aquele que contava de um modo simples a história humana de sempre, a Odisseia. Porém, ao recomendar uma leitura marcante, complementaria com a Ilíada, aliás ambas atribuídas a Homero. No final fica-se com a sensação que está ali praticamente tudo.
2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
A identidade académica e profissional vai-se construindo e amadurecendo à medida que fazemos o nosso caminho. Aquilo que começou pelo pragmatismo vocacional de ser professor, sem nunca o perder de vista, evoluiu em processo de abertura constante, muito pela condição matricial do sentido e do alcance que a visão ampla da geografia proporciona. O célebre e feliz posicionamento da encruzilhada que nos modelou – o que antes era uma exclusividade disciplinar privilegiada, e hoje, desprovida de garantias corporativas, parece ser, cada vez mais, apenas um ponto de partida que se dispersa na indistinção temática daquilo que nos ocupa - continua a ser o grande referencial e um potencial valioso para fazer todo e qualquer caminho. Pode não ser tão determinante no delineamento de uma carreira, na continuidade de uma profissão, mas tem o rasto de um saber antigo que continua a convocar os domínios da cultura, das ciências, da tecnologia e, até das artes e da política. A geografia favorece uma atitude reflexiva perante os problemas do mundo em que vivemos; estimula o espírito crítico e orienta para a formulação de respostas aplicadas; medeia e integra as diversas competências multiescalares que incidem sobre os territórios; favorece a adaptação do indivíduo às novas situações e contribui para o seu desenvolvimento pessoal e humano. Ousaria mesmo acrescentar, como está na moda invocar, a geografia é hoje um saber de resiliência no contexto dos outros saberes, sobretudo, face aquelas especialidades que são chamadas de ponta. A geografia, para mim, é sempre um cais de embarque e desembarque. Um ponto de partida e de chegada, onde nos situamos para se fazer a síntese e partir de novo à aventura.
3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua actividade é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Sim, naturalmente, porque sempre fiz questão de o enunciar. Tem a ver com a afirmação identitária da matriz académica, científica e pessoal, desde o tempo em que passei a sentir-me autónomo. Porém, devo admitir que o reconhecimento nem sempre está isento de desconhecimento e até, quantas vezes, de preconceitos corporativos por parte de alguns pares, sejam eles técnicos, políticos e até, embora menos, académicos… quando, por equívoco, me tratam por arquitecto, engenheiro ou sociólogo… E, porém, é grato verificar, na comunidade e nos media onde laboramos, a crescente designação de o geógrafo a preceder-nos a referência! Enfim, seja ou não uma forma de reconhecimento explícito, venho observando com demais colegas, o facto comum de trilharmos uma grande diversidade de caminhos e desafios onde nos inserimos com naturalidade. Facto que, no meu entender, evidencia um claro reconhecimento da formação em geografia.
4 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspectivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
Antes de mais, ser jovem é invariavelmente uma condição prévia a qualquer opção de identidade. As universidades e os politécnicos têm hoje uma tendência para comunicar a partir da propaganda, e as mensagens ficam inúmeras vezes reduzidas a meros slogans. A um jovem, neste inverno demográfico onde o “futuro” é cada vez mais também um assunto dos não jovens, querendo ser geógrafo diria, antes de tudo, a necessidade de cultivar uma mente aberta e autónoma, dotada de permanente espírito critico-reflexivo, sob o intemporal e grande denominador comum de toda a geografia, que é a capacidade de saber observar o que nos rodeia. Ontem éramos mais uniformes e menos numerosos. Hoje, sendo mais, somos mais diferentes entre todos. Perdeu-se em exclusividade aquilo que se ganhou em capacidade de afirmação diversa. A geografia pode ser um ponto de partida, mas também de passagem, e de chegada, para outros jovens e menos jovens, iniciados em outras áreas. O campo de actuação é o mundo, e Portugal, sugiro, pode ser a escala base do nosso sentir geográfico.
Com os colegas partilharia a inquietação atual por algumas persistências atávicas, que se revestem tantas vezes de corporativismo disciplinar, diga-se, que não da necessidade imperiosa de revisitarmos permanentemente os fundamentos das nossas raízes comuns, particularmente, o valor das grandes narrativas e dos afetos que nos unem. Tal como A. Humboldt escreveu a Goethe, “a natureza tem de ser experimentada pelo sentimento”, sem isso não chegaremos perto dela.
Certamente que não existe uma especificidade ética da geografia, para referir o grande desafio, diria, do exercício de uma geografia cidadã, como suporte de motivação para uma intervenção cívica ativa dos geógrafos. Por outro lado, a grande força em tempos de fragmentação disciplinar está no modo como nos relacionamos com os outros e integramos as galerias temáticas transdisciplinares, que se oferecem hoje como novo objecto/motivo de estudo; como articulamos o local e o global sem que um anule o outro; e como se prossegue a longa tradição geográfica, de se constituir em conhecimento comum, i.e. acessível ao público em geral.
Por fim, e para todos, admito no desenvolvimento da língua portuguesa, enquanto expressão de pensamento, de cultura e de ciência, a grande responsabilidade que nos convoca e a oportunidade do futuro da geografia no nosso País.
5 - Queríamos pedir-lhe que escolha um acontecimento recente, ou um tema actual, podendo ambos ser de âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha, e comente-o, tendo em conta em particular a sua perspectiva e análise como geógrafo.
Apontaria o denominado “brexit” como o acontecimento recente de maior relevância e impacto entre nós, na dupla implicação internacional e nacional. Não tanto pelo facto político em si e dos comentários imediatos que possa suscitar, mas desde logo pelo seu significado e alcance. De facto, a plebiscitada saída do Reino Unido da União europeia, mais do que uma circunstância, constitui um tema para várias escalas e geografias, sobretudo, para a regeneração da promissora tradição da geografia política. Dir-se-ia que, para lá da praxis política, bastaria o seu efeito simbólico para reintroduzir a complexidade geopolítica no continente, designadamente, o abrir de uma rutura no ciclo paneuropeu encetado desde o pós-guerra. Estamos convictos que nada mais será como antes. Este processo pode ser indagado mais para trás, convencionalmente, desde a queda do muro de Berlim; a balcanização da antiga Jugoslávia; a emergência das protonacionalidades; e, mais recentemente, a partir dos inamovíveis desequilíbrios financeiros observados na esfera da moeda única; a mitigação das soberanias nacionais, e o estabelecimento de uma europa alargada a “várias velocidades”; a crescente deslegitimação democrática da eurocracia europeia; os problemas de segurança relacionados com o terrorismo e os conceitos de guerra interior e permanente; as barreiras à mobilidade internacional derivadas das vagas de refugiados/emigrantes forçados, provenientes do sul; a decadência do multiculturalismo. Enfim, todo um conjunto de factores com importantes repercussões imediatas no desenvolvimento próximo do nosso País, designadamente, em domínios tão expectantes e imediatos como as mobilidades, o ambiente e qualidade de vida, a regeneração urbana e sustentabilidade das cidades, a erradicação da pobreza, a criação de emprego, e a promoção das diversas co-existências, o turismo, entre outros tópicos, para os quais a investigação geográfica tendo uma palavra a dizer, nos tempos mais próximos deve estar mobilizada.
6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?
De imediato o Gerês, ou a Ribeira, no Porto, por razões meramente sentimentais. Mas, a escolha é difícil, por tão estimulante e diverso que é o nosso Portugal.
MSMB, 19SET2016