# 37 Francisco Vala
Francisco Vala | Maio 2019
Francisco Vala dirige o Gabinete para a Coordenação das Estatísticas Territoriais do Instituto Nacional de Estatística (INE). Licenciou-se na Universidade de Lisboa em Geografia e Planeamento Regional (variante Geografia Humana), tem uma pós-graduação em Estudos Urbanos pela mesma universidade e foi assistente convidado no Departamento de Geografia/IGOT entre 2001 e 2014, tendo colaborado com o Centro de Estudos Geográficos.
1- Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende
Os livros que me marcaram, enuncio-os mas não os recomendo. Estão associados a momentos específicos e ficam nossos: Lobo do Mar (Jack London), Pela Estrada Fora (Jack Kerouac), o Estrangeiro (Albert Camus), Sinais de Fogo (Jorge de Sena), Comunidade (Luiz Pacheco), Leão, o Africano (Amin Maalouf), Uma verdade incómoda (John le Carré).
Recomendo antes a leitura de ‘The rise of the Creative Class’ de Richard Florida. É um livro que me cativou no início da década passada, por centrar a discussão do potencial de inovação e de desenvolvimento na noção de uma classe criativa, com importância crescente. Nesta tese, os valores associados a uma classe criativa e as experiências que os indivíduos criativos procuram no seu dia-a-dia, valorizam lugares caracterizados pela tolerância e pela diversidade: as cidades criativas. É especialmente cativante a sugestão de que a geografia do crescimento e da inovação é (será) sobretudo função das opções de residência dos indivíduos e das experiências que estes procuram... A análise é contudo centrada na realidade Norte Americana e na altura – já lá vão mais de 15 anos – achei-a demasiado distante para compreender os processos no contexto da Europa Ocidental.
As consequências do processo de ‘reajustamento’ pós-crise em Portugal e os sinais atuais de alguma recuperação económica, sugerem agora que este livro possa ser um bom instrumento de trabalho…
2- Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia-a-dia, ser geógrafo?
O significado de ser geógrafo manifesta-se no interesse constante de entender a realidade através dos processos de transformação do território, num quadro de interações de agentes no tempo e no espaço e na análise crítica destes processos a favor do progresso e do bem-estar. A geografia, admitindo que a realidade é complexa, tem a virtude de trazer para o seu corpo teórico e bagagem de análise empírica os domínios das ciências económicas, sociais e naturais. Ao mesmo tempo, o território como base de análise tem a virtude de questionar os ensinamentos destas áreas afins.
O nosso objeto mas também a nossa dimensão, colocam-nos numa posição de questionamento constante e que julgo ser a mais-valia naquilo que faço profissionalmente e na forma como vivo o dia-a-dia. É inquietante mas desafiante.
3- Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?
Tenho dificuldade em colocar a formação em geografia (ou em outra área científica) como condição para a aplicação, com relevância, dos seus ensinamentos. O reconhecimento é algo que se conquista pela importância do contributo da abordagem geográfica para resolver problemas, seja na implementação de um novo projeto numa empresa ou na administração central ou local, seja no desenho e implementação de políticas públicas.
Dito isto, é com satisfação que verifico um maior número de pessoas com formação em geografia nos quadros do Instituto Nacional de Estatística. Quando entrei para o INE, eramos em número bastante reduzido e estávamos concentrados num número limitado de equipas, ou na área dos estudos regionais ou na área dos SIG. Hoje somos em maior número e estamos presentes nas diversas áreas de produção, das Estatísticas Económicas às Sociais, passando pelos Censos e Territoriais, mas também nas áreas da Recolha e Sistemas de Informação. Por outro lado, há pessoas com formação em geografia em cargos diretivos.
A expressão crescente dos geógrafos nas organizações é um bom indicador do reconhecimento da formação em geografia.
4- O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspetivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
A formação universitária em geografia constitui uma oferta de ‘banda-larga’ pela posição de charneira entre as ciências sociais e naturais, o que facilita a interação com os pares num futuro contexto de trabalho. Ao mesmo tempo, concilia bases teóricas e conceptuais com uma forte componente prática, o que permite aos alunos consolidarem aspetos metodológicos e técnicos que considero fundamentais para assegurar um contributo válido numa organização. A revisão crítica de literatura, a análise empírica através de técnicas de recolha, análise e representação da informação, e a aplicação de modelos preditivos, são uma mais-valia da formação em geografia. Destaco em particular o treino na análise e resolução de problemas com análise multivariada de dados, incluindo técnicas de análise espacial, competências que são valorizadas de forma crescente no mercado de trabalho.
De facto, dir-lhes-ia que a componente espacial nunca esteve tão presente na procura de eficiência nas atividades das empresas, no domínio das políticas públicas e na organização da vida quotidiana dos cidadãos. Diria também que a digitalização e o quadro crescente de informação disponível, estruturada (proveniente de sensores, atividades de gestão empresarial e da administração) ou não (web, redes sociais e crowd sourcing), têm associada uma componente geográfica e constituem uma oportunidade para a geração de novos serviços, para a formulação de novas questões de investigação e para apoiar o acompanhamento de políticas públicas.
Julgo que o futuro é de oportunidade se estiverem asseguradas quatro condições: investimento sério na fase de formação universitária; continuidade da formação; criatividade; abertura e estratégias para lidar com um mercado de trabalho extremamente volátil…
5- Queríamos pedir-lhe que escolha um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser de âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha, e comente-o, tendo em conta em particular a sua perspectiva e análise como geógrafo.
Escolho a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável aprovada pelas Nações Unidas e que estabelece 17 objetivos e um conjunto de metas associadas que deverão ser monitorizadas através de 232 indicadores estatísticos. É extremamente relevante que todos os países tenham adotado um quadro de referência comum de progresso com metas quantificáveis, independentemente do nível de desenvolvimento, e que tocam áreas tão diversas como a pobreza, água, energia, inovação, emprego e cidades. Note-se que no caso dos anteriores Objetivos do Milénio, o referencial estava sobretudo orientado para os países em desenvolvimento.
Para além do significado político desta iniciativa e do alcance dos seus resultados, o que torna a iniciativa interessante é o processo para a sua implementação e a motivação do debate em diferentes níveis de governo à escala global – por exemplo, a reflexão sobre as prioridades da União Europeia e sobre as estratégias e políticas nacionais no quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), mas também o debate ao nível local e a possibilidade de serem estabelecidas agendas locais, alinhadas com os ODS.
Do ponto de vista da monitorização com informação estatística, o motto ‘leaving no one behind’, inclui a desagregação espacial da informação e salienta a necessidade de acompanhar as disparidades territoriais do progresso. Esta dimensão territorial tem mobilizado recursos ao nível internacional, no próprio quadro das Nações Unidas e na OCDE. Neste âmbito, a OCDE organizou recentemente um Workshop sobre a ‘localização da Agenda 2030’ onde foram discutidas iniciativas de acompanhamento da Agenda à escala local e regional, numa perspetiva top-down, e iniciativas de monitorização de governos regionais e locais, numa perspetiva bottom-up.
No âmbito do potencial da informação geográfica para a leitura de base territorial dos indicadores ODS, o INE coordenou uma linha de trabalho no Grupo Integração de Dados do Comité Regional para a Europa da iniciativa das Nações Unidas sobre Gestão Global de Informação Geoespacial (UN-GGIM Europe) justamente sobre a dimensão territorial nos indicadores ODS e o papel da integração da informação geoespacial com informação estatística para a produção dos indicadores, considerando os desafios e potencialidades (fontes de dados, conceitos, análise espacial) para a operacionalização dos indicadores à escala global, europeia e nacional.
Esta agenda é de facto mobilizadora à escala global mas julgo ser importante promover mais iniciativas à escala local que envolvam a sociedade civil e os geógrafos podem ter aqui um papel relevante.
6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?
Retomo as abordagens das saídas de campo de Geografia Urbana. Os processos intensos de transformação na cidade de Lisboa na última década dão-lhe quase um estatuto de laboratório geográfico e o triângulo confinado pela Rua do Poço dos Negros, Rua dos Poiais e Rua de São Bento e áreas adjacentes é bem ilustrativo da intensidade destas mudanças: a reabilitação do edificado e a valorização do mercado imobiliário; a renovação da oferta de comércio e restauração; o surgimento de ateliers, espaços de co-work e galerias; reorientação das ofertas dos espaços culturais e associativos; substituição da função residencial por alojamento turístico; recomposição do tecido social que habita e utiliza aquela área. É uma cidade diferente do que era há dez anos atrás mas que merece ser analisada num quadro estratégico de dimensão metropolitana. Para a visita e para a análise, sugeria contarmos com os Geógrafos Teresa Barata Salgueiro, João Ferrão, Jorge Malheiros e o Economista Duarte Rodrigues.